18 de fevereiro de 2016

Sermões laicos #1

As pessoas sempre me perguntam: você tem religião? Você acredita em Deus ou algo parecido? E eu sempre respondo: nunca me preocupei com isso.

Minha resposta é honesta: de fato, nunca me preocupei com fé e religião. Por isso sempre tive pouco pra dizer a respeito. Mas quando examino devidamente minha memória, percebo que essa resposta esconde outros dois fatos...


Primeiro: eu me lembro de várias ocasiões, ao longo da minha vida, em que me voltei para “algo superior a nós”, digamos assim. Ou seja, eu sempre acreditei que existe alguma coisa além de mim, superior a mim. Sempre tive uma fé, portanto. O que não me preocupava era dar nome à minha crença, porque eu achava que isso me prenderia a alguma tradição, e eu queria negar toda tradição; não queria prisões sobre a minha consciência. Afinal, tratava-se, para mim, de uma experiência bastante íntima; conversar com essa “divindade” era conversar comigo mesmo.

Segundo: refletindo sobre os momentos em que eu exercitava essa fé, percebi que tinha outra forma de me relacionar com Deus, além das religiões tradicionais. A minha forma era o estudo, que começou como uma pesquisa pessoal ingênua - a qual implicava certo ceticismo e onde eu misturava tudo o que minha cultura me oferecia. Depois essa forma se tornou uma investigação científica, acadêmica, criteriosa e hipercrítica.

A percepção desses dois fatos me levou a algumas hipóteses que se concatenam:

1) todo indivíduo tem ou é capaz de ter uma experiência sensorial, subjetiva, psicológica e emotiva que excede o seu próprio ego. A essa experiência damos o nome de divindade;

2) mas para vivenciar tal experiência é preciso notá-la, tomar consciência dela, o que implica acreditar, confiar nela; isso é ter fé. Para esse efeito, ter fé é confiar num princípio além de si próprio, determinado pela cultura;

3) à forma que escolhemos para nos comunicar com a dita experiência e exercitá-la é que damos o nome de religião, e existem vários tipos de religião, inclusive o ceticismo (sim!) e a ciência;

4) se Deus é subjetivo, ele está na nossa consciência e desde que todo indivíduo tenha uma consciência ele terá uma divindade;

5) tomando a consciência como um conjunto de valores que introjetamos de nossa cultura, a divindade é a representação desse conjunto moral; ela nada tem a ver, a priori, com misticismos (conquanto os misticismos sejam formas de articular tais valores);

6) logo, um indivíduo que não tenha uma divindade e uma fé ou que as negue será um psicopata (numa definição pueril, é claro, não criminal), porque não terá ou negará a moral, isto é, algo que poderíamos chamar, simploriamente, de psiquê;

7) se a religião é uma forma que comunica e organiza a consciência e se a vida social consiste, entre outras coisas, na organização dos indivíduos COM as suas consciências, então a religião organiza a vida social;

8) logo, um indivíduo que não participa da religião coletiva é um sociopata (novamente, numa definição simplista), pois ele não compartilha, no final das contas, da organização social;

9) a fé e a religião, portanto, são indispensáveis à vida social;

10) se a ciência é uma forma de religião e a política é uma ciência - ou: se a política também é uma forma de organização da vida social - então política e religião são a mesma coisa. Em suma, ciência = política = religião. Poderíamos acrescentar outros elementos a esta equação, mas, para começar, fiquemos por aqui.


É sobre esses temas, considerando esses argumentos, desenvolvendo esse raciocínio e a partir dessas experiências que escreveremos esta série de textos. Não para investigar a psicopatia ou a sociopatia, mas para refletir sobre o que sejam fé, religião, ciência e política, sobre o lugar que elas ocupam no nosso mundo e sobre o papel que desempenham em nossas vidas.


Um comentário:

  1. Texto excelente!

    Sua forma de ver a existência do divino é algo inédito pra mim, mas é perceptível que é fruto da visão de um historiador e isso é fantástico.

    Não sou nenhum pesquisador, mas gosto bastante de estudar história, e foi muito esclarecedor quando percebi como a religião e a crença em algo maior foram base para o que seria considerado ético em vários povos ao longo da história como os egípcios, babilônios, judeus, gregos, romanos, vikings e até mesmo os chineses e os japoneses.

    O modo de vida desses povos refletem suas religiões e seus mitos, pode parecer óbvio, mas pra mim foi incrível perceber como essas questões interferem até mesmo na sociedade de hoje, essa minha reflexão me leva a concordar com vários pontos do texto. Em primeira leitura, não tem nada que eu discorde (do ponto de vista crítico/filosófico, se fosse discordar de algo, teria que ser enquanto cristão protestante, mas não acho que essa discussão caiba aqui).

    Parabéns! Aguardo ansiosamente pelos próximos textos!

    ResponderExcluir